sexta-feira, 2 de março de 2007

A Morte e Tudo Mais

Adolfo Silva estava sentado a ler o seu jornal, na sala, à espera que a filha chegasse da escola, como tantas vezes acontecia, enquanto a mulher estava no quarto a fazer “arrumações”. Alf (como os amigos gostavam de lhe chamar), ia lendo a necrologia, como fazia todos os dias, esperançado com a possibilidade de que o nome da mulher lá aparecesse, quando se sobressaltou-se ao ouvir a campainha a tocar. Recuperou rapidamente, ajeitou as orelhas de burro que trazia na cabeça (um velho presente da professora da primária) e foi atender a porta. Qual não foi o seu espanto quando viu ali, na entrada da sua humilde vivenda de 10 quartos, a Morte, fumando cerca de 20 cigarros, e criando um ambiente à sua volta semelhante ao de um tubo de escape.
-Ora boas noites. Sr. Silva, não é?
-S, Sim, suponho que sim. Você... você é quem eu estou a pensar?
-Bem, sou, realmente, a Morte, mas, se não se importa, prefiro que me chame La Mort.
-La Mort?
-É a nova mania do Patrão...
Alf deixou La Mort entrar, assustado, quando ouviu um gemido, vindo do seu quarto.
-Mas que raio?
-Ah! ainda bem. Estava com um certo medo de ter chegado atrasado...
-Mas do que raio está para aí a falar, homem?
-Na verdade, não tenho sexo.
-Coitado...
-Vamos mas é ao quarto, antes que me chateie!
-Mas porquê ao quarto? Não pode ficar por aqui? A minha mulher pode-se ter magoado e você é capaz de a assustar... Pensando bem, venha comigo.
E lá foram os dois, em direcção do quarto de Alf, que não parava de olhar para a belíssima lâmina da foice de La Mort (“Basta usar fígado de raparigas virgens que morrem bêbadas. É uma maravilha para estas coisas”, dizia La Mort). À medida que se aproximavam, os gemidos iam-se tornando menos espaçados e mais pronunciados, até que, com um grito final que fez com que a velha ao fundo da rua parasse de rezar à alma do falecido para dizer que o cabrão afinal se andava a divertir, pararam.
-Ora bolas! Vamos a despachar. Abra a porta antes que ela tenha tempo de se recompor.
-Recompor? Mas do que é que você está a falar?
-Compreenda, você tem que abrir a porta, para ver a sua mulher com o amante, e morrer de ataque cardíaco.
-Mas porque é que eu tenho de ter uma morte tão estúpida?
-Morre-se como se vive, é o que costumo dizer...
-Não posso ter uma morte mais digna?
-Só se for a apanhar a sua filha com o professor, mas acho que não chegamos lá a tempo...
- Oh, filha da puta de sorte a minha...
-Pois, veja mas é se se despacha, que eu tenho um encontro com um anjo no purgatório.
-Pensava que não tinha sexo...
-Mas tu queres que eu vá contra as minhas crenças pacifistas, é?
Alf lá abriu a porta para morrer, e viu a sua mulher em cima do St. António. Morreu de ataque cardíaco, enquanto St. António dizia que aquilo lhe ia arranjar problemas, lá em cima...

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