sexta-feira, 3 de novembro de 2006

O Fumador de Erva

Eu nunca fumei erva
Mas é como se fumasse
Minha alma é como um arrumador
Conhece erva e polén
E anda pela mão dos traficantes
A comprar e a vender
Toda a paz que a erva traz
Vem fumá-la a meu lado

Mas eu fico ganzado e perco a graça
Para a nossa grande desgraça
Quando se acaba a erva no fundo da planície
E se sente a ressaca na entrada da noite
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha ressaca é sossego
Porque a erva é das boas
E é o que deve estar no meu bolso
Quando já passa o efeito
E as narinas já não podem com os pozinhos.

Com um ruído de sirenes
Para alem da curva da estrada,
Os bófias estão contentes.
Só tenho pena de saber que eles estão contentes,
Porque, se não soubesse,
Em vez de ir para a prisão levar
Iria para o bairro traficar.

Não fumar incomoda como ressacar à chuva
Quando a erva escassa e a vontade aumenta.

Não tenho bens nem dinheiro.
Ser drogado não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar bem.

E se desejo às vezes,
Por delirar, ser um cordeirinho
(Ou ser um rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A apanhar erva da boa e ser assim muito feliz),
É só porque sinto o que fumo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem de fumo passa
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a fumar
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Fumo erva em mortalha king-size,
Sinto a naifa na mão
E vejo uma cicatriz em mim
No cimo dum devaneio,
Fumo a minha erva e alucino completamente,
Ou alucino completamente e fumo a minha erva
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me comprarem,
Tirando-lhes cada cêntimo
Quando me vêem à minha porta
Mal o carregamento chega
Saúdo-os e vendo-lhes rena
E pasta, quando a pasta é precisa,
E que eu a tenha
Ao pé da pistola carregada
Uma naifa afiada
Onde se vê, lendo na lâmina.
E ao lerem o sangue a escorrer pensem
Que não sou qualquer traficante –
Por exemplo, o bairro antigo
Onde o pessoal consome com maior vontade
Sentam-se e ressacam no chão, cansados de fumar,
E limpam cada linha de pó
Com as narinas já inflamadas.

E depois de Pessoa ortónimo um dos heterónimos. Baseado no poema “O guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro.

2 comentários:

Anónimo disse...

tá do melhor ! x)

Anónimo disse...

sim senhora...aprovado. ta do melhor!!!